sábado, 26 de dezembro de 2015

O que as críticas ao corte de verbas de pesquisa científica no Brasil tem a ver com determinada concepção de ciência?


Nos últimos tempos o pesquisador brasileiro tem sofrido cortes nas verbas de pesquisa. Muitos cientistas têm alertado o prejuízo desses cortes, alguns em tom de tragédia – mais notadamente a neurocientista Suzano Herculano. Para ela, se faz ciência no Brasil em condições “miseráveis” e o valor proporcionado pelo governo para a pesquisa é “ridiculamente baixo”¹.

Nesse texto pretendo apresentar argumentos contra alguns aspectos das inúmeras críticas feitas nos últimos tempos sobre os cortes de financiamento na ciência brasileira. Antes de qualquer acusação é bom deixar claro: (i) não, eu não concordo com cortes de gastos na pesquisa brasileira; no entanto, compreendo os cortes frente à conjuntura atual; (ii) eu não concordo com o pouco apoio dos estudantes de pós-graduação e a falta de profissionalização do cientista brasileiro (como a ausência de leis trabalhistas, plano de saúde, entre outros...), questão distinta do corte de verbas.

Bueno, meu desacordo com alguns “defensores” da ciência brasileira reside em dois aspectos subjacentes à defesa aparentemente neutra da ciência no Brasil. A “defesa” aqui criticada está comprometida com dois pontos de vista sobre a atividade científica que eu considero problemáticos: o primeiro ponto é a “síndrome de colônia” e o segundo ponto é o comprometimento com uma determinada concepção de ciência, que não necessariamente é a única ou a melhor.


Síndrome de colônia


A síndrome da colônia se refere a um complexo de inferioridade em relação ao exterior. Nesse caso, em relação à ciência feita no eixo Europa-EUA. Obviamente, é inegável que nesses lugares há muitos grupos que encabeçam projetos inovadores, com um grande montante de recursos, além de uma comunidade cientifica geralmente mais inserida nas observações sistemáticas e confiáveis de sua área.

O cientista brasileiro, frente a esse eixo, tende a se sentir inferiorizado por habitar o seu país. Ele sabe de sua capacidade e possui muitas ideias inovadoras, mas normalmente se tem poucas oportunidades para grandes projetos. Além disso, o cientista sente que as instituições cientificas brasileiras são enfraquecidas, com uma comunidade cientifica menor, divulgação cientifica defasada e revistas de menor impacto.

Mas o cientista brasileiro deve compreender isso de maneira contextualizada. Temos que entender que vivemos em um país de terceiro mundo que apresenta inúmeros problemas sociais. É claro que a ciência faz parte da construção de um país mais justo, mas ela não é prioridade frente a investimentos imediatos em politicas sociais, educação e saúde.


Além disso, o gasto em ciência e tecnologia no país tem acompanhado o crescimento econômico: 



É compreensível, portanto, que em um período conturbado os investimentos em ciência diminuam. É claro que a ciência deve ser um pilar nacional, mas convenhamos que os gastos em programas sociais e saúde são mais importantes para o povo brasileiro de forma imediata. E até mesmo essas áreas sofreram cortes. Se está ruim para o cientista na bancada, imagina para a família quem tem o bolsa família cortado.

A atitude infantil de se comparar com elites econômicas e “chorar” por falta de investimento faz parte de uma ideia meritocrática, em que o cientista, como alguém “bem-sucedido”, merece mais o investimento do Estado do que outras pessoas que dependem dos escassos recursos do país. Essa atitude denota uma falta de sensibilidade aos problemas sociais, uma postura egocêntrica de alguém preocupado em não ter sua carreira impulsionada por falta de investimento.

Essa atitude também está relacionada com a dificuldade de formar comunidades cientificas mais fortes em algumas áreas no Brasil. Creio que essa dificuldade reside justamente na atitude de alguns cientistas “colonizados”. Se o cientista brasileiro faz um trabalho meia boca ele manda para a revista nacional. Se o trabalho está bom ele não pensa em mandar para a revista brasileira e fortalecer a produção intelectual daqui - ele manda para uma revista exterior. Esse ciclo vicioso reforça o enfraquecimento da nossa comunidade cientifica, que quer constantemente se aproximar dos americanos e europeus, não iniciando um fortalecimento das instituições nacionais. Além disso, o cientista geralmente não está interessado em projetos de extensão e divulgação de ciência, pois quer colocar todo o seu tempo na pesquisa cientifica. 



 Concepção de ciência


O comprometimento com uma determinada concepção de ciência tem a ver com a síndrome de colônia. Essa concepção se baseia em três ideias subjacentes que não precisam acompanhar, necessariamente, a atividade científica. São elas: conhecimento-mercadoria, meritocracia e competitividade.

A produção do conhecimento está submetida a processos cada vez mais próximos da produção mercantil. Esse modo de encarar a ciência tem relação com a conversão do conhecimento científico em conhecimento-mercadoria, ou seja, à sua incorporação no modo de produção capitalista².

Um exemplo está na própria descrição do funcionamento do laboratório de Suzana Herculano: implantei recentemente em meu laboratório um sistema "capitalista" de remuneração pelo trabalho feito, e que está sendo sucesso absoluto de produtividade e motivação!”³. A cientista não está isolada, muitos orientadores fomentam a competição e a meritocracia em suas bancadas. O cientista brasileiro, desde o seu trabalho de bancada, até as agências de fomento, é avaliado em volume de produção, não em qualidade. Ele deve produzir cada vez mais e o produto da ciência é o artigo científico.

Os valores de meritocracia e competitividade são as fontes de maior produção na ciência em vários níveis, tanto dentro quando entre grupos de pesquisa. O problema disso é que essa produção muitas vezes não é significativa. Além disso, a avaliação meritocrática é falha por motivos similares da injustiça do vestibular: a produção de um estudante depende, por exemplo, do status do seu orientador, de apadrinhamentos em seu grupo de pesquisa, da capacidade politica de adquirir recursos e do campo de atuação. Por exemplo, na área de Bioquímica um estudante de doutorado pode publicar 10 artigos por ano, algo impensável para um estudante de ecologia ou de ciências sociais, por exemplo.


Menos pode ser mais


É claro que muitas áreas precisam de investimentos massivos para que estudos de grande impacto sejam feitos. Mas nem toda a produção de conhecimento é assim. Normalmente se segue uma lógica produtivista de conhecimento, que requer a entrada contínua de grandes recursos. A lógica é a mesma do mercado: competição, mérito, produção em massa e insensibilidade aos problemas sociais.

Mas a ciência não precisa estar comprometida com isso (veja o movimento Slow Science). A produção de conhecimento é um empreendimento diferente da produção mercantil. Somente uma visão estritamente mercantil é insensível aos problemas sociais e acredita ingenuamente nos valores de competição e mérito no meio cientifico. Muitas críticas aos cortes de investimento na ciência brasileira estão impregnadas por essa visão, longe de ser neutra ou a melhor para a ciência.


¹ http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/08/suzana-herculano-houzel-fazemos-ciencia-no-brasil-em-condicoes-miseraveis.html
² http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-24782011000300012&script=sci_arttext

Matéria sobre o movimento Slow Science> http://www.cartacapital.com.br/sociedade/slow-science


2 comentários:

  1. Boa, Léo!!
    Ótimo tema pra debate!
    Fiz um novo post com base no teu texto, pra comentá-lo, acrescentar algumas coisas e expôr umas divergências. A ideia é seguir no debate. Vamos ver se alguém mais se prontifica.
    Tá aí o post:

    http://adagadeoccam.blogspot.com.br/2015/12/a-ciencia-e-o-corte-de-verbas-no-brasil.html

    Abraço

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